É praticamente impossível percorrer as ruas de Porto Alegre sem se deparar com o autógrafo "Toniolo" em muros, monumentos e prédios públicos. O autor das pichações, Sérgio José Toniolo, acredita que essa notoriedade pode agregar valor a produtos e serviços (lojas de tintas, por exemplo), e por isso decidiu colocar sua imagem à disposição dos meios de comunicação.
No início do ano, ele enviou carta a mais de 100 agências de publicidade de todo o Rio Grande do Sul, oferecendo-se para estrelar comerciais, em plena ação com seu inseparável spray, mediante um cachê de "apenas" R$ 100 mil. A mídia não ficou de fora: jornais e emissoras de rádio ou TV que desembolsarem R$ 10 mil poderão entrevistar o célebre pichador. "Os valores são altos mesmo, para selecionar melhor as propostas", justifica. "Meu objetivo não é o dinheiro, e sim contar minha verdadeira história, coisa que até hoje ninguém fez direito." Com esse valor, calcula, daria para cobrir os R$ 130 mil que alega ter investido em 21 anos de atividade com tintas, pincéis, barras de giz e adesivos. Até agora, não apareceu nenhuma proposta para o candidato a garoto-propaganda. No final da década de 80, Toniolo já publicara proposta semelhante em anúncios classificados, sem sucesso.
Anônimo famoso
Apesar do sobrenome onipresente, poucos conhecem a identidade desse verdadeiro mito urbano. Há mesmo quem duvide que ele exista.
Mas Sérgio Toniolo é real. Morador do bairro Petrópolis, solteiro, 58 anos, Segundo Grau completo, escrivão de polícia aposentado por problemas psiquiátricos desde os 42, ele é protagonista de uma história repleta de fatos inusitados e polêmicos - tudo confirmado pela clipagem de matérias publicadas em jornais do Rio Grande do Sul e do Brasil, as quais ele coleciona em uma farta pasta-arquivo.
Em 1980, tornou-se recordista nacional de participação nas seções de "cartas do leitor" dos principais veículos do País, com mais de mil mensagens publicadas desde 1972 - os assuntos iam da indignação com as fezes de cães nas calçadas às complexidades da reforma ortográfica da Língua Portuguesa, todos redigidos com clareza e objetividade dignas de um colunista profissional. A façanha chegou a receber destaque em uma reportagem exibida pela Rede Globo no Fantástico em 1981.
Não demorou para que os políticos esfregassem as mãos. Em 1982, o telegrama de um ilustre senador do Partido Popular (PP) mudaria sua vida para sempre.
- Nosso partido necessita sua ajuda. Conte com meu apoio para candidatura a cargo de sua preferência. Abraços, Tancredo Neves.
Empolgado, Toniolo solicitou ao TRE/RS a candidatura a deputado estadual pelo PMDB, que acabara de fundir-se ao PP de Tancredo. A Justiça Eleitoral, no entanto, barrou tais pretensões, sob alegação de que o escrivão era filiado ao PTB - o que ele não admite. "Foi uma fraude de gente que não queria que eu concorresse, mas eu dei o troco." O número 1543, pretendido por Toniolo para a disputa do pleito de 1982, o acompanharia para sempre, a cada ano eleitoral, em suas "candidaturas" - inclusive a presidente da República - pelo fictício Partido Anarquista.
Apesar das bravatas, estava encerrada prematuramente a carreira política. Iniciava-se então a de pichador, que se mostraria bem mais promissora. A "estréia" ocorreu no mesmo ano, com uma frase escrita sobre o calçadão da Rua dos Andradas. "Eu queria que as pessoas, das janelas dos prédios, vissem meu protesto." Logo voltou-se para outros espaços públicos, e as investidas foram aumentando em freqüência e audácia (confira no box), dividindo opiniões. Detestado por muitos, era tratado com simpatia por setores da Esquerda e publicações alternativas como o jornal Cobra.
Tantas foram as peripécias que, em 1986, um laudo da perícia médica do Estado o incapacitou para a atuação profissional. Diagnóstico: esquizofrenia paranóide. "Essa modalidade é uma das mais comuns, se manifestando por volta dos 40 anos de idade", diz uma psicóloga que prefere não ser identificada (por motivo de ética profissional, justifica, pois não conhece o paciente). "Em geral, são indivíduos muito inteligentes e desconfiados, às vezes com mania de perseguição ou de grandeza, e acreditam serem dotados de uma missão especial a cumprir."
Modus Operandi
Para quem se considera "o rei mundial da pichação", não existe local à prova de ataques. Em anos eleitorais, ele chega a gastar mais de uma lata de spray por noite, e garante não ter medo da polícia ou de represálias. Pelo contrário: ele diz que, muitas vezes, ser preso ajuda a chamar ainda mais a atenção. "Sou o único pichador que assina o trabalho com o próprio nome, sem apelidos ou símbolos que ninguém entende."
No que se refere a estratégias de ação, Toniolo garante que há muito tempo tem deixado as propriedades particulares em paz. "Pichar a casa dos outros causa mais revolta do que o atacar um monumento, por exemplo, e não tem o mesmo efeito", justifica. "Tem que ser um lugar bem visível, que cause impacto."
Articulado e bem informado sobre diversos assuntos, sua figura é bastante popular no bairro Petrópolis, onde mora desde que nasceu. "Tenho muitos seguidores, muitos dos quais ensinei a pichar quando ainda eram adolescentes, mas prefiro agir sozinho, pois o pessoal é amador e acaba fazendo muito barulho", ressalta. O ex-policial já foi ao Interior e ao Litoral Norte para expandir sua marca. Nos anos 80, durante uma tour à pequena praia de Figueirinha, teve que correr muito para não ser baleado pelo revólver de um veranista que o flagrara autografando alguns muros. Os tiros passaram bem perto. Curiosamente, foram observadas pichações com o nome "Toniolo" até mesmo em municípios onde ele nunca esteve, as quais atribui a admiradores anônimos.
Problemas com a Justiça
Além de 3 mil sprays e 70 mil pichações, a memória do ex-policial contabiliza também tiros, ameaças de morte, prisões, uma internação psiquiátrica e incontáveis processos por incitamento ao voto nulo, perturbação da ordem e depredação.
Embora diga que só vai encerrar suas atividades "quando os políticos não sujarem mais a cidade", neste ano ele tem mantido os sprays bem guardados, por precaução. No dia 2 de junho, ele terá que comparecer ao Fórum Central de Porto Alegre, onde será interrogado pela 10ª Vara Criminal, que recebeu denúncia do Ministério Público, por crime de dano ao patrimônio do Estado. Não será um trabalho fácil para a Justiça, pois ela própria determinou, em 1988, a interdição do ex-escrivão. O advogado Cristiano Prunes de Azevedo, especialista em Direito Civil, explica que essa condição legal torna o indivíduo inimputável (a exemplo do que ocorre com índios e menores de idade), sendo necessário um tutor designado para responder pelos atos e bens do interditado.
Sem se importar com o estigma de vândalo, Sérgio José Toniolo lamenta que os brasileiros sejam "acomodados" diante das injustiças. "O que falta ao pessoal é atitude", diz o rei da pichação, enquanto espera o telefone tocar - de preferência, que seja alguma agência de propaganda. l
"Sou o inventor da pichação com hora marcada"
Além de usar adesivos e pandorgas com o próprio nome (incluindo uma versão com lâmpadas, para exibições noturnas), Toniolo inovou ao avisar com antecedência seus ataques.
Em janeiro de 1984, último ano do regime militar no Brasil, ele anunciou no programa Guaíba Revista, então apresentado por Lasier Martins na rádio Guaíba AM:
- No dia 17 deste mês, às cinco da tarde, vou pichar o Palácio Piratini.
A notícia repercutiu. O então governador, Jair Soares (PDS), não quis pagar para ver, e colocou dezenas de policiais militares de prontidão em frente ao prédio. Para identificar o pichador, havia uma foto 3X4 obtida nos arquivos da polícia civil, onde ele trabalhara 17 anos. O retrato, defasado, mostrava-o cabeludo.
Na hora marcada, ninguém suspeitou do homem calvo que saía da Catedral Metropolitana e se dirigia à sede do governo, distante 50 metros.
- "Boa tarde, irmãos!"
A saudação confundiu os brigadianos, que deixaram passar quem eles acreditavam ser algum padre da paróquia. Tarde demais: Toniolo conseguiu pichar as letras T, O, N, I, O... assim que concluiu o "L", foi detido (foto). Deu tempo até para colocar o pingo no "I". Encaminhado no mesmo dia ao Hospital Psiquiátrico São Pedro, para avaliação, mais uma vez ele driblou seus captores. "Eu conhecia o pessoal do hospício, pois levava muita gente lá quando trabalhava no Estado". Assim que chegaram ao famoso endereço na avenida Bento Gonçalves, adiantou-se vários passos à frente da dupla de policiais civis que o conduzia e, espertamente, alertou na recepção:
- Estou trazendo dois dementes com "mania de policial": segurem-nos, enquanto vou buscar os documentos que esqueci na viatura, e tomem cuidado, pois eles são perigosos!
Com a inversão de papéis, os plantonistas correram em direção aos agentes, agarrando-os como se fossem mais dois candidatos à camisa-de-força. Quando desfeito o equívoco, era tarde demais. O ex-escrivão tinha escapado pelos fundos do prédio.
Em novembro do mesmo ano, ele divulgou que sua próxima investida seria contra o Palácio do Planalto, mas foi preso logo após deixar Porto Alegre no ônibus que o levaria a Brasília/DF. "Dessa vez, eu sabia que seria preso, e o objetivo era esse mesmo", revela. O mais incrível é que, até hoje, não se sabe como o nome "Toniolo" foi aparecer pichado no mesmo local e data prometidos.
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